Éramos, nós, Portugueses, a rir, a cantar e a cimentar a Liberdade, de braço dado, povoado a povoado, aldeia a aldeia, vila a vila, cidade a cidade, sede partidária a sede partidária, local de trabalho a local de trabalho, escola a escola, palavra a palavra, poema a poema, pintura mural a pintura mural.
Sonhámos com as mais díspares realizações, individuais e em conjunto. E, embora nem todas concretizadas, sabemos, três décadas e meia passadas, em cada dia, a diferença entre ditadura e Democracia, a que permitiu o nosso desenvolvimento e o dos povos de terras por onde, mal e bem, passámos.
À Maria da Conceição Banza, Companheira do Liceu e de Viagem
Fim da década de sessenta do século passado: os dois últimos anos escolares, sexto e sétimo, obrigavam à disciplina de Organização Política e Administrativa da Nação, panegírico do salazarismo e da Constituição de 1933. O Dr. José Afonso (“Zeca Afonso, o que canta contra eles”), chegado inesperadamente, tinha-a ministrado de forma diferente; virara-lhe o conteúdo e até conseguira falar de Sartre – a ultrapassagem dos rígidos, manhosos e sonolentos conteúdos programáticos haveria de levá-lo, pouco depois, para a prisão política, sussurrada pelos mais politizados, com revolta e indignação, nos corredores, pátios e sanitários do Liceu de Setúbal.
Em Filosofia, outros autores que tinham ajudado a entender os homens, a vida, os fenómenos e os objectos eram estudados a correr e, às vezes, nem isso. Sorte para alguns: duas professoras eram ousadas para a época, no que ensinavam e nos métodos utilizados, e uma delas até já tivera – comentava-se baixinho – um problema na cidade onde antes exercera por não ceder na avaliação, negativa e justa, que atribuíra ao filho “de um homem influente do regime” que queria que o filho passasse e, mantida a dignidade e a classificação pela correcta profissional, mexera os cordelinhos para tê-la longe.
Uma vez, chegados para a primeira aula da manhã – cheios de sono os que não moravam em Setúbal e se levantavam às seis horas –, todos foram surpreendidos pela gritaria de um professor – o que apelidava, sempre que lhe apetecia, de “bestas” os rapazes que eram seus alunos e, se pudesse, complementava ainda a designação com uns toques no pescoço, chamados caldos – ao Reitor, homem de autoridade dada, para além do elevado cargo, pelos bons exemplos, práticas e civismo. Os discípulos admiravam a sua postura e bem entendiam ser um democrata que esperava por melhores tempos para se exprimir em Liberdade.
Para os que o comboio transportava, divertidas viagens, sobretudo se as avarias das velhas locomotivas a vapor lhes proporcionavam paragens, longas, com direito a laranjas, saborosas, tiradas junto à ferrovia e uma cervejinha – ao arrepio da higiene mais elementar de hoje e coisa natural na época – passada de boca em boca que a higiene era então assim… E os atrasos nas chegadas, providenciais, livravam da atrapalhação de exercícios de avaliação oral, as chamadas, habitualmente aleatórias e que aterravam, logo pela manhã, os ensonados sem as lições na ponta da língua...
As visitas de fim de curso (pagas, amiúde, com dificuldade) a Espanha mostravam aos jovens e aos mestres que os acompanhavam locais e monumentos: uns ensinavam História e outros engrandeciam a ditadura que manietava um povo irmão; revejo uma colega, corajosa, a escrever postais ilustrados, perante a estupefacção de todos e o sorriso nos olhos de alguns, enquanto o guia pronunciava um discurso de elogio a quem fizera mal a tantos cidadãos, num dos símbolos do franquismo.
Na unidade hoteleira que albergava o grupo, ela referiria aos íntimos que fizera a homenagem, sentida e possível, a um tio-avô por afinidade que para lá fora e lutara em defesa da República, atraiçoada por uma guerra, horrível como todas.
Souberam alguns, tempos depois, que esse parente, criativamente honrado e herói, fora transformado em personagem pelo génio de Ernest Hemingway, em obra inesquecível e ilustrativa de uma Espanha em profundo sofrimento, Por Quem os Sinos Dobram.
Quando se deu o assassínio do Reverendo Martin Luther King, um texto acerca do ilustre estado-unidense não pôde passar na íntegra no jornal do Liceu. O artigo dizia que ele fora um pacifista e a qualificação era complicada: “Estão a ver o melindre da palavra com Portugal a defender-se de agressões em África?” Houve boicote à compra, uma espécie de pequeno escândalo.
O Mundo, o mutável Mundo, elucidava na construção de consciências: os ecos do Maio de 68, da Primavera de Praga, do “Black Power” também educavam os que, ainda crianças, tinham chegado ao Liceu; eram pessoas quase adultas e sabiam o que havia a fazer para ajudar ao devir de Portugal.
Diploma na mão, conhecimentos plurais a enriquecê-lo, saudades dos longos momentos de estudo e descoberta, das festas pindéricas, idênticas à que Milos Forman mostrou em O Baile dos Bombeiros, dos jogos à batalha naval, marotos, nas aulas menos interessantes, de alguns namoricos, das primeiras descobertas sexuais (os anticoncepcionais adquiridos, mais ou menos à socapa, num misto de desafio a preconceitos e alguma culpa inculcada pelos mesmos), as moças e os moços deixaram o estabelecimento de ensino onde, anos atrás, a maioria se tinha conhecido.
Saudades do Liceu: dos colegas, do convívio, da abertura de horizontes culturais, dos professores que sabiam ser competentes e humanos: a formação que nos deram, com sabedoria e moderação, continua nos homens e mulheres maduros que os encontraram, há muito, junto às velhas carteiras das salas de aula. Dos que se viram, certamente obrigados, a ir com os discentes ao Governo Civil, guerra colonial iniciada, em defesa do “Ultramar Português”, a compreensão pela situação.
Conduzidos por uma conterrânea, bastante nova e politizada, tão sóbria como na actualidade, os do Barreiro só viveram parte desse episódio: fugiram quase todos para a estação da CP de Setúbal, discretamente. Foi o momento da compreensão primeira de que não podiam pactuar com o que estava errado.
Quanto aos mestres brutos e (em contextualização com as suas personalidades) defensores do indefensável, ventos, chuvas, marés, luas e sóis apagaram-lhes os nomes.
As moças e os moços continuaram a caminhada, a morte de alguns condiscípulos a desgostá-los; entraram no mercado de trabalho ou prosseguiram estudos, acrescidos os sacrifícios para quem tinha ambas as actividades que naquele tempo não havia horários que permitissem a sua harmonização.
Umas e outros avançaram, constituíram família e vieram bebés, alguns afilhados de antigos colegas que estreitaram mais os afectos com os progenitores. Sob outro ponto de vista, era grande a expectativa da chegada da Democracia que, pelo sacrifício de muitos, se avizinhava; a sua iminência já era abordada com mais à-vontade durante a governação da equipa do Professor Marcelo Caetano.
E caiu o totalitarismo com a exemplar contenção dos militares do 25 de Abril, a euforia do povo na rua, a saída dos presos políticos das hediondas e humilhantes masmorras, as inesquecíveis vivências em comum, a descoberta, tantas vezes ocasional, dos pides, encontrados em becos, vielas, ruas, avenidas e bairros. Aterrados, os bandidos, não pelo mal que tinham causado a tantas pessoas mas por serem descobertos. Gozarão hoje, os miseráveis, de salários como aposentados da Função Pública.
Éramos, nós, Portugueses, a rir, a cantar e a cimentar a Liberdade, de braço dado, povoado a povoado, aldeia a aldeia, vila a vila, cidade a cidade, sede partidária a sede partidária, local de trabalho a local de trabalho, escola a escola, palavra a palavra, poema a poema, pintura mural a pintura mural.
Sonhámos com as mais díspares realizações, individuais e em conjunto. E, embora nem todas concretizadas, sabemos, três décadas e meia passadas, em cada dia, a diferença entre ditadura e Democracia, a que permitiu o nosso desenvolvimento e o dos povos de terras por onde, mal e bem, passámos.
A memória e a recordação do Liceu de Setúbal quando os que lá entraram há quase cinquenta anos se revêem, com mais ou menos regularidade, agora que as aposentações chegam e as fotografias de filhos, netos, sobrinhos e afilhados são mostradas e transferidos para as gerações mais novas os desígnios não cumpridos.
A propósito: refiram-me, por favor, um novo almoço para os do tempo em que as meninas entravam por uma porta e os rapazes por outra e a Serra Mãe (obrigada, Sebastião da Gama) começava a encantá-los, num amor que perdura.
Manuela Fonseca *
* Colunista do Jornal Rostos
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