A Igreja Católica, uma das maiores instituições que floresceram
no âmago da civilização ocidental foi durante cerca de treze séculos a grande
responsável pelo lento progresso da humanidade.
A partir do final do século
XIV, o esforço secular, humanista e intelectual da Renascença, produziu aquilo
a que Engels chamou «a maior revolução progressista que a Humanidade já viveu»
dando origem a uma nova era de humanismo e reforma, juntamente com o interesse
pela ciência, pela medicina e pela filosofia, amplamente auxiliada pela invenção,
no séc. XV, da prensa móvel e da impressão de livros (somente em século e meio,
de 1450 a 1600, o número de livros existentes no mundo, passou de menos de
trinta mil, todos eles escritos à mão, para mais de cinquenta milhões de livros
impressos).
Opondo-se ao
pensamento humano em ascensão, caminhava o Catolicismo iníquo. A igreja Romana
amordaçava com determinação a expressão pública das ideias radicais e perseguia
energicamente os autores de qualquer filosofia diferente. Embora sustentassem a
proliferação de um conhecimento teológico autorizado entre as classes
privilegiadas e cultas, num sentido mais lato, os chefes da igreja eram
instintivamente anti-intelectuais e deliberadamente obscurantistas. Para que os
cardeais continuassem a preservar acerrimamente a sua existência terrena
privilegiada, quanto menos os leigos soubessem, melhor.
Poucos duvidam que no princípio, a fé cristã se tenha
pautado pela lisura, mas as aspirações humanas depressa foram corrompidas pela
instituição e a Igreja afundou-se rapidamente num atoleiro de corrupção.
Quando os filósofos começaram a aprofundar os seus estudos do
funcionamento do universo e a «ciência» indutiva substituiu o raciocínio
dedutivo, tornou-se claro que a ortodoxia da Igreja fornecia modelos
inadequados e paradigmas duvidosos, tornando irreconciliável o que era
observável e quantificável com a teologia apresentada.
Esta incompatibilidade entre os pensadores do fim do renascimento
e os teólogos cristãos ortodoxos tem as suas raízes em tempos mais antigos,
remontando o conflito aos primórdios do predomínio cristão: ao primeiro
Concílio de Niceia.
No ano 325, o Imperador Constantino, o mentor da civilização
ocidental, viu-se imerso no conflito teológico, inundado por questões
doutrinárias, tendo que se defrontar com um dos maiores desafios da sua
governação. A causa de tudo isto foi apenas uma. A doutrina escrita da fé
cristã fornecera um modelo para o estabelecimento de uma Igreja e autorizara os
líderes cristãos a encontrarem as bases para uma nova sociedade num ambiente
político extremamente frágil, criado pelo rápido declínio de Roma. Porém os
bispos da Igreja, homens extremamente poderosos neste novo mundo cristão,
debatiam entre si alguns dos princípios basilares da fé, questões que não
estavam claramente definidas nos Evangelhos, nem haviam sido expostas em termos
adequados nos textos sagrados desta doutrina. E, neste mundo instável, as
questões da doutrina religiosa podiam revelar-se incendiárias, podendo mesmo
desencadear uma hecatombe global que consumiria indistintamente imperadores,
reis e papas.
Deste modo, num enorme esforço de conservação do seu domínio
sobre o tecido político e religioso do seu tempo, Constantino convocou uma
imensa assembleia com padres da Igreja e políticos regionais com o propósito de
solucionar o problema a favor do Cristianismo, uma doutrina definida por
ditames muito estritos que de facto enterraria as questões difíceis e
responderia às que encerravam menores dificuldades. Desta forma, um consenso
travaria o avanço rápido para a separação entre a Igreja e o Estado e atrairia os
rebeldes para um tipo comum de veneração.
Foi então em 325 da nossa era que muitos dos que são hoje
considerados os pressupostos fundamentais da Igreja foram idealizados e
concebidos para os homens por outros homens que se faziam substituir a Deus. Em
Niceia os seus membros foram ao âmago da doutrina e da religião cristã. A
consequência mais importante extraída da apreciação dos inúmeros pontos
doutrinários ao longo de muitas sessões
de debate foi a enorme influência que teve no percurso do cristianismo e por
meio dele, nas vidas e nas ideias de muitos pensadores conceituados desde o
século IV até aos nossos dias.
Os membros do concílio decidiram sobre a verdadeira natureza
de Deus.
Na tentativa de conceberem uma noção inteligível de Deus,
redigiram a sua própria teologia, para que fosse simultaneamente académica e de
fácil entendimento pelos que não tinham instrução. Esta doutrina, a par do
conceito da Santíssima Trindade, foi criada e votada. Deste modo, ficou
determinado que o único Deus era Pai, Filho e Espírito Santo. O Pai , ou
«soberano», transcende todos os limites finitos e é imortal e omnipotente.
Jesus Cristo tornou-se muitíssimo mais importante do que um mero profeta com
poderes conferidos por Deus e ascendeu ao estatuto de «Filho de Deus», ou de
«Palavra feita carne», divindade encarnada. O terceiro elemento, o Espírito
Santo, representa a centelha divina em todos os crentes, e é outra forma de
expressar a fé ou santidade. Deste modo, para os Católicos, a Eucaristia
tornou-se uma transubstanciação genuína na qual a carne e o sangue do próprio
Jesus são consumidos.
Esta posição radical ficou conhecida como a doutrina de homoousios (de uma única substância) e
foi gerada a partir do argumento pseudo-intelectual dos teólogos do século IV,
ansiosos por encontrarem uma definição de Deus. A questão muito debatida da
natureza de Deus ocupara o centro da discussão entre os bispos. De um lado
estava o Bispo de Alexandria, Atanásio, de trinta anos, que pregava a
ortodoxia, ao passo que uma opinião muito diferente era defendida por Ário, um
sacerdote rebelde de Alexandria, à época com setenta e sete anos de idade. Ário
criara a seita do Arianismo, edificada em torno do homoiousos (de substância idêntica), que rejeitava a noção de que
Cristo era da mesma substância de Deus, e declarava que a encarnação de Jesus
não era um aspecto de Deus, mas que o Filho, enquanto que divino e idêntico a
Deus («de substância idêntica»), fora criado por Ele. Ário disse de Jesus
Cristo "Houve um tempo em que ele não existiu". Constantino, permitiu
que o concelho deliberasse a favor de Eutanásio e da sua doutrina e de então em
diante, o Arianismo passou a ser concebido como doutrina oposta aos ensinamentos
cristãos oficiais. Muitos ignoraram esta decisão e, de facto, o Arianismo
floresceu nos primeiros dois séculos seguintes ao Concílio de Niceia, mas, por
volta do século VI, os seus adeptos foram marginalizados e perseguidos quase até
à extinção e o Arianismo tornou-se secreto, sendo rapidamente encarado pelos
Católicos como a maior doutrina herética.
Durante a época medieval a Igreja de Roma tornou-se cada vez
mais política e mundana, fundindo o espiritual com o secular por forma a que o
papa se tornasse tanto o chefe de um estado soberano como um líder espiritual.
Para financiar ambições pontifícias, a Igreja comprometeu amplamente a teologia,
e quando a sua doutrina fabricada se revelou inadequada, os cardeais forçaram a
interpretação das escrituras até ao limite.
Talvez a expressão mais evidente disto seja a utilização
cada vez mais generalizada das «indulgências» para encherem os cofres do Papa.
Através do sistema das indulgências, os pecadores podiam pagar a absolvição dos
seus pecados e sucessivos papas perverteram de tal modo este processo que, na
época da Reforma, este simples artifício tornara-se já uma importante fonte de
rendimento do Vaticano. O frade Johann Tetzel, viajou pela Europa a vender
indulgências à populaça a partir de uma banca instalada na praça de cada cidade
que visitava. Até vendeu indulgências absolvendo pecados antes mesmo de serem
cometidos. Com este artifício, um assassino podia receber a absolvição antes
mesmo de cometer aquele acto criminoso.
Mas nem todo o dinheiro ganho com este negócio (que passou
por inúmeros soberanos) foi usado no financiamento das aspirações políticas dos
papas; muito deste «ouro dos pecadores» voltou a encher os cofres papais esvaziados
com os gastos feitos em festins orgiásticos, especiarias raras, sedas finas e
no serviço de prostitutas especializadas. Com isto, as indulgências do papa e
dos seus cardiais preferidos de Roma foram pagas pelas indulgências do
campesinato, apesar de todo este espectáculo deplorável ser sancionado por
Deus.
À medida que se assistia a uma escalada desenfreada desta
hipocrisia, Erasmo, um académico católico profundamente honesto, escreveu uma
série de ataques mordazes dirigidos ao clero e revelou a clara disparidade
entre «Verdade» e doutrina oficial. O seu livro «Elogio da Loucura» tornou-se
tão popular que depressa foi traduzido em pelo menos uma dúzia de línguas.
A Santa Sé cimentara longamente a sua posição privilegiada
mantendo os laicos na absoluta ignorância. Todos os textos religiosos,
incluindo a Bíblia e o livro de orações, estavam disponíveis apenas em latim,
sendo esta a língua usada nos serviços religiosos e na redacção de todos os
documentos oficiais. Isto significava que a ampla maioria do povo não fazia a
mais pequena ideia do que era dito na igreja ou transmitido pela sua doutrina.
De repente, na prosa de Erasmo, eram colocadas questões
delicadas e em vernáculo e, com elas, a suspeição ao clero. Instigados por
intelectuais e por membros do baixo clero, como Lutero e Calvino, os leigos
começaram a pedir o esclarecimento da situação. A Igreja, inicialmente
indolente e demasiado confiante ficou tão surpreendida que quase entrou em
colapso. Apercebendo-se do perigo que a ameaçava, a Igreja reagiu com medidas
drásticas com o objectivo que a Reforma de Lutero alastrasse a todo o norte da
Europa. Numa tentativa de reeducação das massas, foi constituída, em 1534, por
Inácio de Loyola, a Companhia de Jesus ou Jesuítas. O Concílio de Trento teve
lugar em 1545 e reuniu-se depois, a intervalos irregulares, a fim de delinear a
política papal para anular os ataques teológicos. Essa assembleia constituída
por altas esferas da hierarquia da Igreja, decretaria o julgamento de Galileu,
quase um século mais tarde e através da sua actuação arrastaria a Europa para a
pior guerra religiosa da história, a Guerra dos Trinta Anos, iniciada em 1618.
Mas a decisão política mais controversa, tomada para conter
a crescente vaga de protestantismo, pensamento científico e heresia, foi a
criação da Inquisição Romana, instituída pelo papa Paulo III, em 1542, revitalizando
a Inquisição Papal, instituída em 1231 por Gregório IX, com o objectivo de eliminar
os Albigenses (ou Cátaros) e que já realizava o seu trabalho sangrento desde o
século XIII. O seu dever oficial era investigar e reeducar, trazer almas
perdidas de novo para a Santa Madre Igreja; mas, na verdade, a Inquisição era
uma terrível arma de vingança, um mecanismo para matar. Esta organização
exterminou mais de um milhão de homens, mulheres e crianças (à época, uma em
cada duzentas pessoas existentes na Terra).
Paulo III decidindo ressuscitar a antiga instituição,
deu-lhe corpo e conferiu-lhe poderes ainda mais draconianos, voltando forçando
deliberadamente a interpretação das Escrituras para desculpar a enorme
quantidade de castigos, que incluíam a confiscação de todas as terras e bens,
prisão celular em isolamento e praticamente todos os tipos de crueldade física
e mental. Grupos de investigadores treinados viajavam pelos diversos reinos da
Europa a recolher informação sobre hereges suspeitos. O medo antecedia-os, e
valiam-se de técnicas psicológicas subtis para o intensificar. Nos dias que
antecediam a sua chegada eram afixados cartazes a anunciar a sua chegada
iminente. O Inquisidor entrava na cidade acompanhado por uma procissão solene
de monges encapuzados. Os espiões já tinham previamente identificado alguém
detentor de conhecimentos heréticos e essas pessoas eram capturadas e levadas à
presença do Inquisidor. A denúncia e a delação eram estimuladas. Se um transgressor
conseguisse denunciar uma dúzia de suspeitos, os seus próprios pecados eram
perdoados e era poupado à fogueira.
Para se fazer uma acusação de heresia bastava o testemunho
de dois informadores. O suspeito ficava preso durante toda a fase de
interrogatórios e a Inquisição nunca tinha pressa em terminar o seu trabalho. Muitas
vítimas inocentes morreram no cárcere enquanto aguardavam que o Inquisidor
avaliasse as suas confissões, outras eram torturadas até à morte, ou,
desesperadas, confessavam crimes dos quais eram de facto inocentes e dos quais
nada sabiam. Os informadores nunca eram identificados e os depoimentos que
haviam feito em relação ao suspeito não eram revelados. Aos suspeitos era
sempre recusado um advogado e as acções da Inquisição eram levadas a cabo no
mais absoluto sigilo, assim, muitas vezes as vítimas simplesmente desapareciam.
Tal despotismo teve consequências na moldura social e
política do mundo ocidental. Um retrato esclarecedor é o homicídio de cerca de
30.000 mulheres e muitas centenas de homens e crianças, entre 1500 e 1650. O
crime destas vítimas não foi de facto nenhum. Apenas má sorte. Foram suspeitas
de bruxaria, uma ironia bem amarga já que a Igreja rejeitava a noção do oculto.
Todavia, as seitas protestantes, na sequência da bem
sucedida rebelião de Lutero, em muitos aspectos, não eram melhores do que os
Católicos. À semelhança dos seus congéneres papistas, os líderes luteranos e
calvinistas deixaram-se levar pelo interesse próprio e pela ilusão, e também
eles se entregaram a orgias de violência e perseguições.
Uma das suas vítimas foi Miguel Servet, notável e talentoso
médico que sustentou ideias religiosas perigosamente sinceras e as publicou em
livro, em 1531, um tratado que clamava sem reservas o abandono do postulado
conceito da Santíssima Trindade. Preso pela Inquisição vienense em 1533,
conseguiu fugir para Genebra, o epicentro do Calvinismo, onde julgou encontrar
refúgio. Mas Calvino também não gostou das suas ideias religiosas e em vez de
refúgio, mandou que fosse preso, julgado e sentenciado à morte. Conta que a
execução na fogueira o supliciou a uma morte muito lenta, tendo levado duas
horas para o matar.
Mas semelhante crueldade foi apenas um aspecto como o
extremo zelo religioso se tornou uma força destruidora. Extremistas de todas as
comunidades religiosas mataram concidadãos seus, e a severidade e a paranóia impeliram
nações inteiras para lutas violentas, rebeliões e finalmente a guerra.
Em 1562 eclodiram guerras civis em série, conhecidas como
Guerras de Religião, que conduziram a um conflito europeu que durou 35 anos. Em
Paris e noutras cidades importantes a fricção entre os Calvinistas franceses
conhecidos por Huguenotes e os Cristãos originou um conflito que atingiu o seu clímax
sangrento na dia do Massacre de S. Bartolomeu, a 24 de Agosto de 1572, quando
cerca de setenta mil protestantes foram chacinados. A guerra civil levou mesmo ao
assassínio do rei de França, Henrique III em 1589 e só em 1598 foi reposta uma
certa ordem, com o Édito de Nantes, criado pelo corajoso e determinado Henrique
IV, onde se declarava liberdade de consciência e igualdade de direitos legais e
educacionais para os protestantes franceses.
Numa coluna, a devoção religiosa legou-nos obras magníficas.
Enriquecem-nos os trabalhos de Giotto, Dante, Ticiano, Miguel Ângelo, Milton,
Palestrina, Mozart, e muitos outros. Mas também temos de considerar a coluna
dos débitos onde temos a caça às bruxas, os homens da Inquisição, as guerras
religiosas, os atentados bombistas, as crianças mortas, o terrorismo.
O CONFLITO RELIGIOSO É TODAVIA RECRUDESCENTE.
PELO MUNDO FORA UMA FÉ CORRUPTA CONTINUA A ESPALHAR ANGÚSTIA.
(Apontamentos retirados e adaptados do livro "Giordano
Bruno - O Filósofo Maldito", da autoria de Michael White)