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13/05/17

Prisca Theologica



A Igreja Católica, uma das maiores instituições que floresceram no âmago da civilização ocidental foi durante cerca de treze séculos a grande responsável pelo lento progresso da humanidade.
A partir do final do século XIV, o esforço secular, humanista e intelectual da Renascença, produziu aquilo a que Engels chamou «a maior revolução progressista que a Humanidade já viveu» dando origem a uma nova era de humanismo e reforma, juntamente com o interesse pela ciência, pela medicina e pela filosofia, amplamente auxiliada pela invenção, no séc. XV, da prensa móvel e da impressão de livros (somente em século e meio, de 1450 a 1600, o número de livros existentes no mundo, passou de menos de trinta mil, todos eles escritos à mão, para mais de cinquenta milhões de livros impressos).
Opondo-se ao pensamento humano em ascensão, caminhava o Catolicismo iníquo. A igreja Romana amordaçava com determinação a expressão pública das ideias radicais e perseguia energicamente os autores de qualquer filosofia diferente. Embora sustentassem a proliferação de um conhecimento teológico autorizado entre as classes privilegiadas e cultas, num sentido mais lato, os chefes da igreja eram instintivamente anti-intelectuais e deliberadamente obscurantistas. Para que os cardeais continuassem a preservar acerrimamente a sua existência terrena privilegiada, quanto menos os leigos soubessem, melhor.
Poucos duvidam que no princípio, a fé cristã se tenha pautado pela lisura, mas as aspirações humanas depressa foram corrompidas pela instituição e a Igreja afundou-se rapidamente num atoleiro de corrupção.
Quando os filósofos começaram a aprofundar os seus estudos do funcionamento do universo e a «ciência» indutiva substituiu o raciocínio dedutivo, tornou-se claro que a ortodoxia da Igreja fornecia modelos inadequados e paradigmas duvidosos, tornando irreconciliável o que era observável e quantificável com a teologia apresentada.
Esta incompatibilidade entre os pensadores do fim do renascimento e os teólogos cristãos ortodoxos tem as suas raízes em tempos mais antigos, remontando o conflito aos primórdios do predomínio cristão: ao primeiro Concílio de Niceia.
No ano 325, o Imperador Constantino, o mentor da civilização ocidental, viu-se imerso no conflito teológico, inundado por questões doutrinárias, tendo que se defrontar com um dos maiores desafios da sua governação. A causa de tudo isto foi apenas uma. A doutrina escrita da fé cristã fornecera um modelo para o estabelecimento de uma Igreja e autorizara os líderes cristãos a encontrarem as bases para uma nova sociedade num ambiente político extremamente frágil, criado pelo rápido declínio de Roma. Porém os bispos da Igreja, homens extremamente poderosos neste novo mundo cristão, debatiam entre si alguns dos princípios basilares da fé, questões que não estavam claramente definidas nos Evangelhos, nem haviam sido expostas em termos adequados nos textos sagrados desta doutrina. E, neste mundo instável, as questões da doutrina religiosa podiam revelar-se incendiárias, podendo mesmo desencadear uma hecatombe global que consumiria indistintamente imperadores, reis e papas.
Deste modo, num enorme esforço de conservação do seu domínio sobre o tecido político e religioso do seu tempo, Constantino convocou uma imensa assembleia com padres da Igreja e políticos regionais com o propósito de solucionar o problema a favor do Cristianismo, uma doutrina definida por ditames muito estritos que de facto enterraria as questões difíceis e responderia às que encerravam menores dificuldades. Desta forma, um consenso travaria o avanço rápido para a separação entre a Igreja e o Estado e atrairia os rebeldes para um tipo comum de veneração.
Foi então em 325 da nossa era que muitos dos que são hoje considerados os pressupostos fundamentais da Igreja foram idealizados e concebidos para os homens por outros homens que se faziam substituir a Deus. Em Niceia os seus membros foram ao âmago da doutrina e da religião cristã. A consequência mais importante extraída da apreciação dos inúmeros pontos doutrinários  ao longo de muitas sessões de debate foi a enorme influência que teve no percurso do cristianismo e por meio dele, nas vidas e nas ideias de muitos pensadores conceituados desde o século IV até aos nossos dias.
Os membros do concílio decidiram sobre a verdadeira natureza de Deus.
Na tentativa de conceberem uma noção inteligível de Deus, redigiram a sua própria teologia, para que fosse simultaneamente académica e de fácil entendimento pelos que não tinham instrução. Esta doutrina, a par do conceito da Santíssima Trindade, foi criada e votada. Deste modo, ficou determinado que o único Deus era Pai, Filho e Espírito Santo. O Pai , ou «soberano», transcende todos os limites finitos e é imortal e omnipotente. Jesus Cristo tornou-se muitíssimo mais importante do que um mero profeta com poderes conferidos por Deus e ascendeu ao estatuto de «Filho de Deus», ou de «Palavra feita carne», divindade encarnada. O terceiro elemento, o Espírito Santo, representa a centelha divina em todos os crentes, e é outra forma de expressar a fé ou santidade. Deste modo, para os Católicos, a Eucaristia tornou-se uma transubstanciação genuína na qual a carne e o sangue do próprio Jesus são consumidos.
Esta posição radical ficou conhecida como a doutrina de homoousios (de uma única substância) e foi gerada a partir do argumento pseudo-intelectual dos teólogos do século IV, ansiosos por encontrarem uma definição de Deus. A questão muito debatida da natureza de Deus ocupara o centro da discussão entre os bispos. De um lado estava o Bispo de Alexandria, Atanásio, de trinta anos, que pregava a ortodoxia, ao passo que uma opinião muito diferente era defendida por Ário, um sacerdote rebelde de Alexandria, à época com setenta e sete anos de idade. Ário criara a seita do Arianismo, edificada em torno do homoiousos (de substância idêntica), que rejeitava a noção de que Cristo era da mesma substância de Deus, e declarava que a encarnação de Jesus não era um aspecto de Deus, mas que o Filho, enquanto que divino e idêntico a Deus («de substância idêntica»), fora criado por Ele. Ário disse de Jesus Cristo "Houve um tempo em que ele não existiu". Constantino, permitiu que o concelho deliberasse a favor de Eutanásio e da sua doutrina e de então em diante, o Arianismo passou a ser concebido como doutrina oposta aos ensinamentos cristãos oficiais. Muitos ignoraram esta decisão e, de facto, o Arianismo floresceu nos primeiros dois séculos seguintes ao Concílio de Niceia, mas, por volta do século VI, os seus adeptos foram marginalizados e perseguidos quase até à extinção e o Arianismo tornou-se secreto, sendo rapidamente encarado pelos Católicos como a maior doutrina herética.
Durante a época medieval a Igreja de Roma tornou-se cada vez mais política e mundana, fundindo o espiritual com o secular por forma a que o papa se tornasse tanto o chefe de um estado soberano como um líder espiritual. Para financiar ambições pontifícias, a Igreja comprometeu amplamente a teologia, e quando a sua doutrina fabricada se revelou inadequada, os cardeais forçaram a interpretação das escrituras até ao limite.
Talvez a expressão mais evidente disto seja a utilização cada vez mais generalizada das «indulgências» para encherem os cofres do Papa. Através do sistema das indulgências, os pecadores podiam pagar a absolvição dos seus pecados e sucessivos papas perverteram de tal modo este processo que, na época da Reforma, este simples artifício tornara-se já uma importante fonte de rendimento do Vaticano. O frade Johann Tetzel, viajou pela Europa a vender indulgências à populaça a partir de uma banca instalada na praça de cada cidade que visitava. Até vendeu indulgências absolvendo pecados antes mesmo de serem cometidos. Com este artifício, um assassino podia receber a absolvição antes mesmo de cometer aquele acto criminoso.
Mas nem todo o dinheiro ganho com este negócio (que passou por inúmeros soberanos) foi usado no financiamento das aspirações políticas dos papas; muito deste «ouro dos pecadores» voltou a encher os cofres papais esvaziados com os gastos feitos em festins orgiásticos, especiarias raras, sedas finas e no serviço de prostitutas especializadas. Com isto, as indulgências do papa e dos seus cardiais preferidos de Roma foram pagas pelas indulgências do campesinato, apesar de todo este espectáculo deplorável ser sancionado por Deus.
À medida que se assistia a uma escalada desenfreada desta hipocrisia, Erasmo, um académico católico profundamente honesto, escreveu uma série de ataques mordazes dirigidos ao clero e revelou a clara disparidade entre «Verdade» e doutrina oficial. O seu livro «Elogio da Loucura» tornou-se tão popular que depressa foi traduzido em pelo menos uma dúzia de línguas.
A Santa Sé cimentara longamente a sua posição privilegiada mantendo os laicos na absoluta ignorância. Todos os textos religiosos, incluindo a Bíblia e o livro de orações, estavam disponíveis apenas em latim, sendo esta a língua usada nos serviços religiosos e na redacção de todos os documentos oficiais. Isto significava que a ampla maioria do povo não fazia a mais pequena ideia do que era dito na igreja ou transmitido pela sua doutrina.
De repente, na prosa de Erasmo, eram colocadas questões delicadas e em vernáculo e, com elas, a suspeição ao clero. Instigados por intelectuais e por membros do baixo clero, como Lutero e Calvino, os leigos começaram a pedir o esclarecimento da situação. A Igreja, inicialmente indolente e demasiado confiante ficou tão surpreendida que quase entrou em colapso. Apercebendo-se do perigo que a ameaçava, a Igreja reagiu com medidas drásticas com o objectivo que a Reforma de Lutero alastrasse a todo o norte da Europa. Numa tentativa de reeducação das massas, foi constituída, em 1534, por Inácio de Loyola, a Companhia de Jesus ou Jesuítas. O Concílio de Trento teve lugar em 1545 e reuniu-se depois, a intervalos irregulares, a fim de delinear a política papal para anular os ataques teológicos. Essa assembleia constituída por altas esferas da hierarquia da Igreja, decretaria o julgamento de Galileu, quase um século mais tarde e através da sua actuação arrastaria a Europa para a pior guerra religiosa da história, a Guerra dos Trinta Anos, iniciada em 1618.
Mas a decisão política mais controversa, tomada para conter a crescente vaga de protestantismo, pensamento científico e heresia, foi a criação da Inquisição Romana, instituída pelo papa Paulo III, em 1542, revitalizando a Inquisição Papal, instituída em 1231 por Gregório IX, com o objectivo de eliminar os Albigenses (ou Cátaros) e que já realizava o seu trabalho sangrento desde o século XIII. O seu dever oficial era investigar e reeducar, trazer almas perdidas de novo para a Santa Madre Igreja; mas, na verdade, a Inquisição era uma terrível arma de vingança, um mecanismo para matar. Esta organização exterminou mais de um milhão de homens, mulheres e crianças (à época, uma em cada duzentas pessoas existentes na Terra).
Paulo III decidindo ressuscitar a antiga instituição, deu-lhe corpo e conferiu-lhe poderes ainda mais draconianos, voltando forçando deliberadamente a interpretação das Escrituras para desculpar a enorme quantidade de castigos, que incluíam a confiscação de todas as terras e bens, prisão celular em isolamento e praticamente todos os tipos de crueldade física e mental. Grupos de investigadores treinados viajavam pelos diversos reinos da Europa a recolher informação sobre hereges suspeitos. O medo antecedia-os, e valiam-se de técnicas psicológicas subtis para o intensificar. Nos dias que antecediam a sua chegada eram afixados cartazes a anunciar a sua chegada iminente. O Inquisidor entrava na cidade acompanhado por uma procissão solene de monges encapuzados. Os espiões já tinham previamente identificado alguém detentor de conhecimentos heréticos e essas pessoas eram capturadas e levadas à presença do Inquisidor. A denúncia e a delação eram estimuladas. Se um transgressor conseguisse denunciar uma dúzia de suspeitos, os seus próprios pecados eram perdoados e era poupado à fogueira.
Para se fazer uma acusação de heresia bastava o testemunho de dois informadores. O suspeito ficava preso durante toda a fase de interrogatórios e a Inquisição nunca tinha pressa em terminar o seu trabalho. Muitas vítimas inocentes morreram no cárcere enquanto aguardavam que o Inquisidor avaliasse as suas confissões, outras eram torturadas até à morte, ou, desesperadas, confessavam crimes dos quais eram de facto inocentes e dos quais nada sabiam. Os informadores nunca eram identificados e os depoimentos que haviam feito em relação ao suspeito não eram revelados. Aos suspeitos era sempre recusado um advogado e as acções da Inquisição eram levadas a cabo no mais absoluto sigilo, assim, muitas vezes as vítimas simplesmente desapareciam.
Tal despotismo teve consequências na moldura social e política do mundo ocidental. Um retrato esclarecedor é o homicídio de cerca de 30.000 mulheres e muitas centenas de homens e crianças, entre 1500 e 1650. O crime destas vítimas não foi de facto nenhum. Apenas má sorte. Foram suspeitas de bruxaria, uma ironia bem amarga já que a Igreja rejeitava a noção do oculto.
Todavia, as seitas protestantes, na sequência da bem sucedida rebelião de Lutero, em muitos aspectos, não eram melhores do que os Católicos. À semelhança dos seus congéneres papistas, os líderes luteranos e calvinistas deixaram-se levar pelo interesse próprio e pela ilusão, e também eles se entregaram a orgias de violência e perseguições.
Uma das suas vítimas foi Miguel Servet, notável e talentoso médico que sustentou ideias religiosas perigosamente sinceras e as publicou em livro, em 1531, um tratado que clamava sem reservas o abandono do postulado conceito da Santíssima Trindade. Preso pela Inquisição vienense em 1533, conseguiu fugir para Genebra, o epicentro do Calvinismo, onde julgou encontrar refúgio. Mas Calvino também não gostou das suas ideias religiosas e em vez de refúgio, mandou que fosse preso, julgado e sentenciado à morte. Conta que a execução na fogueira o supliciou a uma morte muito lenta, tendo levado duas horas para o matar.
Mas semelhante crueldade foi apenas um aspecto como o extremo zelo religioso se tornou uma força destruidora. Extremistas de todas as comunidades religiosas mataram concidadãos seus, e a severidade e a paranóia impeliram nações inteiras para lutas violentas, rebeliões e finalmente a guerra.
Em 1562 eclodiram guerras civis em série, conhecidas como Guerras de Religião, que conduziram a um conflito europeu que durou 35 anos. Em Paris e noutras cidades importantes a fricção entre os Calvinistas franceses conhecidos por Huguenotes e os Cristãos originou um conflito que atingiu o seu clímax sangrento na dia do Massacre de S. Bartolomeu, a 24 de Agosto de 1572, quando cerca de setenta mil protestantes foram chacinados. A guerra civil levou mesmo ao assassínio do rei de França, Henrique III em 1589 e só em 1598 foi reposta uma certa ordem, com o Édito de Nantes, criado pelo corajoso e determinado Henrique IV, onde se declarava liberdade de consciência e igualdade de direitos legais e educacionais para os protestantes franceses.
Numa coluna, a devoção religiosa legou-nos obras magníficas. Enriquecem-nos os trabalhos de Giotto, Dante, Ticiano, Miguel Ângelo, Milton, Palestrina, Mozart, e muitos outros. Mas também temos de considerar a coluna dos débitos onde temos a caça às bruxas, os homens da Inquisição, as guerras religiosas, os atentados bombistas, as crianças mortas, o terrorismo.
O CONFLITO RELIGIOSO É TODAVIA RECRUDESCENTE.
PELO MUNDO FORA UMA FÉ CORRUPTA CONTINUA A ESPALHAR ANGÚSTIA.


(Apontamentos retirados e adaptados do livro "Giordano Bruno - O Filósofo Maldito", da autoria de Michael White)

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