Portugal foi sempre um único
reino sem identidades fortes separadas, mas dentro dessa unidade política, no
entanto, desenvolveram-se várias memórias históricas. Por exemplo, da dinastia,
das instituições eclesiásticas, das famílias e linhagens aristocráticas e dos
municípios, como se vê nas actas de Cortes. Todas estas entidades, instituições
e grupos produziram documentos e arquivos, quer administrativos, quer
narrativos. Nalguns casos, atingiu-se mesmo um nível literário e técnico muito
elevado, como com a "Crónica de El-Rei D. João I" (cerca de 1434) de Fernão
Lopes ou as "Décadas da Ásia" (1552-1563) de João de Barros. A
História de Portugal recebeu esses vários contributos, como no caso do poema
"Os Lusíadas" (1572) de Luís Vaz de Camões, que, aliás, deveu muito
aos materiais narrativos acumulados até então: lido a partir do século XIX como
a epopeia colectiva de um povo, o texto privilegia de facto os feitos de
algumas famílias aparentadas com a do próprio autor. Mas foi a História das
dinastias reinantes (e depois a dos governos) que seria finalmente considerada
«nacional», na medida em que, a partir do século XIX, veio a ser assimilada ao
processo de projecção de uma nação soberana e construção de um Estado moderno.
As crónicas dos reinados, promovidas pelos próprios reis, constituíram o ponto
de partida desta História. Em 1846, Alexandre Herculano iniciou com grande
êxito de audiência a publicação de uma "História de Portugal" que as
gerações seguintes tomariam como a primeira referência propriamente
«científica» da historiografia portuguesa».
A História constitui, desde
então, um terreno privilegiado de reflexão e debate sobre o país, e a ela se
dedicaram alguns dos intelectuais de maior destaque da vida pública portuguesa
dos séculos XIX e XX: Oliveira Martins ("História de Portugal (1879),
Teófilo Braga, António Sardinha, António Sérgio ou Jaime Cortesão. O estudo do
passado chegou ainda ao grande público, desde o século XIX, através da ficção à
maneira de Walter Scott e Victor Hugo, da qual Almeida Garrett ("Frei Luís
de Sousa", "O Arco de Santana", 1845) e Alexandre Herculano ("Eurico,
o Presbítero", 1844; "O Monge de Cister", 1848; "Lendas e
Narrativas", 1851) deram os melhores exemplos. Mas a História também preencheu
o horizonte dos portugueses visualmente, através do tema histórico na pintura
(como a de José Malhoa), na estatuária (como a de Francisco Franco, inspirada pelos
painéis de São Vicente de Fora) e no cinema (como no filme "Camões",
de José Leitão de Barros, em 1946, ou no "Non ou a Vã Glória de
Mandar", de Manoel de Oliveira, em 1990), e até na reactivação de estilos,
como o neomanuelino no século XIX. A História foi sempre feita por muita gente,
com vários objectivos e de várias maneiras.
No entanto, a memória histórica
oficial ou publicamente relevante para os portugueses nem sempre incluiu todo o
passado do país, não só por limitações da investigação e conhecimento, mas
também por óbvia conveniência política e cultural. Na Idade Média, por exemplo,
as memórias históricas remeteram geralmente as suas origens, não para quaisquer
populações primitivas, mas para as prestigiadas civilizações clássicas do
Mediterrâneo, por via da mitologia grega e romana, com a fundação de Lisboa
atribuída por exemplo a Ulisses.
A maneira como os portugueses
conceberam o seu passado mudou, assim, ao longo da História. Como em todos os
países, a memória nacional consistiu num jogo politicamente conveniente de
supressões e descobertas. A perseguição da Inquisição durante os séculos
XVI-XVIII à minoria «cristã-nova», composta sobretudo pelos descendentes dos
judeus convertidos, foi recuperada e valorizada a partir do século XIX, por
liberais e republicanos, embora não necessariamente bem compreendida. Por
contraste, porém, o facto dos portugueses e seus descendentes radicados na
América portuguesa terem sido, entre finais do século XV e meados do século
XIX, os maiores traficantes de escravos do planeta foi sempre muito menos
claro, tal como o pouco entusiasmo que a abolição da escravatura da escravatura
no século XIX suscitou de um lado e outro do Atlântico lusófono.
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